Márcio Nepomuceno expõe dor, memória e resistência após quase 30 anos encarcerado
Para a maioria das pessoas, três décadas são tempo de construir uma família, ver os filhos crescerem, mudar de profissão, viajar, errar, recomeçar.
Para Márcio dos Santos Nepomuceno, 49 anos, esse tempo se resumiu a uma cela de seis metros quadrados, paredes brancas e silêncio.
“Passei mais tempo preso do que livre. Vi a vida de quem eu amava acontecer atrás de um vidro. Enterrei pessoas que nunca pude tocar. Vi meus filhos crescerem sem meu abraço. Sofri calado quando me tornei um estranho na própria família.”
Márcio, conhecido pelo nome que rejeita — Marcinho VP, está preso desde 25 de agosto de 1996. Passou pelos presídios federais de Mossoró, Catanduvas e Porto Velho. Hoje, está em Campo Grande (MS), sob isolamento diário de 22 horas, sem progressão de regime desde o início da pena.

“Tem gente que acha que cadeia é férias. Mas a cadeia te quebra por dentro. Cada dia aqui é uma guerra silenciosa para não enlouquecer.”
A alcunha que carrega ainda o condena além da Justiça.
“Mesmo isolado do mundo, longe de tudo e de todos, ainda insistem em dizer que sou chefe do Comando Vermelho. Será que as pessoas realmente acreditam que o Sistema Penitenciário Federal não é capaz de manter alguém afastado de qualquer tipo de crime? O sistema, apesar de suas falhas, cumpre com rigor o isolamento. Ainda assim, vivem me associando a tudo de ruim que acontece no Rio de Janeiro, como se eu estivesse presente nas ruas, quando na verdade, estou enclausurado entre paredes frias e silêncio. O que poucos entendem, é que ninguém deseja mais do que eu mesmo se manter distante daquilo que um dia me destruiu. Eu não busco poder, tampouco fama construída no erro. Busco paz. Busco o direito de recomeçar, mesmo que o mundo insista em me prender ao passado.”
Márcio admite sem hesitar: o passado o envergonha.
“Eu errei. Errei feio. E dói ainda mais perceber que as pessoas só querem congelar o pior de mim no tempo.
O ‘Marcinho VP’ é um fantasma que me assombra, é uma cicatriz que arde quando dizem esse nome.”
Dentro da cela, decidiu se reconstruir pela palavra, e encontrou ali sua liberdade possível. Lançou três livros reconhecidos por juristas e estudiosos como raras obras de resistência cultural produzidas em cárcere.
Compositor, escritor, primeiro ocupante da Cadeira 1 — Graciliano Ramos da Academia Brasileira de Letras do Cárcere, ele segue produzindo. Este ano, lançou o livro “A Cor da Lei”, que contou com a participação do filho, Oruam, no lançamento. Mas a ferida de ser tratado como quem não pode mudar segue aberta.
“Meu maior sofrimento hoje não é a grade. É o rótulo. São os olhares que dizem que sou irrecuperável. Quase ninguém me chama de Márcio. É como se eu não tivesse direito de nascer de novo.”
E então, vem o desabafo que ele guarda há anos:
“Ressocializar não é um slogan bonito para colocar em discurso. Ressocializar é acreditar que seres humanos mudam. É dar oportunidade para quem se feriu e feriu outros, encontrar uma nova forma de existir. Se a lei diz que a pena tem que ser justa, humana e com possibilidade de retorno à sociedade, por que me condenam à morte em vida? Quanto mais eu me esforço para provar que sou um homem transformado, mais tentam me trancar dentro do cadáver do meu passado. E isso diz mais sobre a crueldade do sistema do que sobre mim. Eu não posso apagar o que fiz, mas posso decidir quem eu sou hoje. A ressocialização é meu direito. E também deveria ser um dever do Estado.”
Márcio se agarra à escrita como quem segura o oxigênio.
“Eu já chorei noites inteiras tentando não me perder dentro de mim mesmo. Mas escrever me mantém vivo. É assim que eu provo que ainda existo.”
Poesia final:
Eu mudei. O mundo mudou. O tempo mudou.
Só o rótulo ficou.
Ele me chama como se eu ainda fosse a pior versão de mim.
Eu respondo com silêncio, com livros, com futuro.
Tentam me aprisionar no nome. Eu tento me libertar no homem.
E nessa disputa, sou eu quem segue de pé.

















